ACIDENTE DE TRABALHO POR COVID: NOVA DISPUTA ENTRE PATRÕES E EMPREGADOS

- foto Paulinho Costa -


segunda-feira maio 24, 2021

Dos quase 21,3 mil afastados do trabalho por casos ligados ao exercício profissional em 2020, seja por ter sido infectado por covid-19 ou pelo contato com alguém doente, 15,8 mil eram mulheres (74%) e 5,4 mil eram homens (26%). (Por BBC News Brasil | | Matheus Magenta)

Uma decisão judicial que obrigou uma empresa a indenizar e pagar e pensão à viúva de um motorista que morreu de covid-19 após ser infectado em maio de 2020 trouxe à tona uma disputa que se intensifica nos tribunais do Brasil. A covid-19 pode ser considerada uma doença ou mesmo acidente de trabalho?

Para responder a essa pergunta, a BBC News Brasil analisou regras, pareceres, decisões judiciais e opiniões de especialistas. Em resumo, enquanto Cortes superiores como o Supremo Tribunal Federal não tomarem decisões que sirvam de parâmetro para as demais, cada magistrado decidirá distintamente, sem ter um fundamento único.

E a dificuldade atual é como determinar com certeza se um trabalhador que não atua em hospitais, por exemplo, contraiu coronavírus durante o expediente. No caso citado acima, a Justiça do Trabalho em Minas Gerais reconheceu neste ano como acidente de trabalho a morte por covid-19 do motorista de uma transportadora, e determinou o pagamento de uma indenização por danos morais de R$ 200 mil para a filha e a mulher do funcionário, além do pagamento de pensão.

Ele era a única fonte de renda da casa.

A empresa, em resposta, disse à Justiça ter adotado todas as medidas de segurança, como máscaras e orientações sobre os riscos envolvidos. Mas o magistrado entendeu que o funcionário ficou suscetível à contaminação em pontos de parada e pátios de carregamento durante o trajeto interestadual, por exemplo, e que a empresa não informou a quantidade de máscaras e álcool em gel entregues e nem comprovou um treinamento sobre riscos e cuidados.

Há vários casos do tipo, que nem sempre chegam à Justiça. Ao todo, dados da Previdência, obtidos e compilados pela reportagem, mostram que a covid-19 gerou no ano passado 19 mil notificações de doença ou acidente de trabalho no Brasil.

As dez profissões mais atingidas foram: técnico de enfermagem, enfermeiro, auxiliar de enfermagem, abatedor, auxiliar de escritório, assistente administrativo, magarefe (que mata e esfola reses nos matadouros), fisioterapeuta, agente comunitário e recepcionista.

E já prevendo problemas trabalhistas decorrentes da pandemia, o governo federal publicou em março de 2020, mês em que o Brasil registrou oficialmente a primeira morte por covid-19, uma medida provisória que flexibilizava as regras trabalhistas em meio à pandemia. O artigo 29 do texto afirmava que “os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”.

STF e a prova diabólica
O trecho da medida provisória que barrava na prática o enquadramento como doença ocupacional acabaria revogado um mês depois pelo Supremo Tribunal Federal, após pedidos de partidos políticos, como PDT, Rede Sustentabilidade e PT, e entidades sindicais.

“Considerar ex vi legis (em virtude da lei) que os casos de contaminação pelo coronavírus não são considerados ocupacionais salvo a comprovação nexo causal se exige uma prova diabólica. Eu penso que a maior parte das pessoas que desafortunadamente contraíram a doença não são capazes de dizer com precisão onde e em que circunstância adquiriram a doença. Acho que é irrazoável exigir-se que assim seja”, afirmou o ministro Luís Roberto Barroso no julgamento em plenário.

Para o ministro Edson Fachin, “é importante deixar claro que o ônus de comprovar que a doença não foi adquirida no ambiente de trabalho e/ou por causa do trabalho deve ser do empregador, e, não, do empregado, como estabelece a norma impugnada”.

Prova diabólica, ou Probatio diabolica , é um conceito jurídico oriundo do direito romano que trata de uma prova considerada extremamente difícil ou até impossível de ser produzida para comprovar um fato. No caso da covid-19, como dito acima, o ponto é: como determinar com certeza se um trabalhador contraiu-a durante o expediente?

E como um empregador poderia provar o oposto, por exemplo? Isso, segundo casos judiciais em tramitação no país, passa por mostrar à Justiça que, por exemplo, a empresa distribuiu máscaras, treinou seus funcionários sobre riscos e medidas de segurança, adotou distanciamento no ambiente de trabalho e afastou de funções presenciais quem estivesse com sintomas (leia mais abaixo).

O fato é que cada caso é decidido individualmente, e as disputas judiciais vão além de provar que contraiu-se covid-19 durante o exercício do trabalho, já que o STF deixou claro que seria impossível provar onde o vírus foi contraído.

Mas parte dos juízes trabalhistas nega pedidos de empregados justamente por não terem provado que ficaram doentes trabalhando. E a questão está longe de ser pacificada.

“Toda atividade econômica hoje é considerada de risco, mas algumas são essenciais para a manutenção da própria vida em sociedade. Esses trabalhadores não têm como se evadir do risco, e o risco ali é presumido. Esse é o entendimento que tem sido construído, mas que infelizmente ainda está longe de pacificação”, explica a procuradora do trabalho Marcia Kamei, coordenadora nacional de defesa do meio ambiente do trabalho do Ministério Público do Trabalho (MPT).

Segundo ela, uma possibilidade de resolução das disputas judiciais em torno das atividades consideradas essenciais (como motoristas e professores) seria o STF aplicar para o contexto da pandemia uma decisão de repercussão geral (828040) tomada anteriormente pela Corte. Essa decisão garante ao trabalhador que atua em atividade de risco o direito a indenização em razão de danos decorrentes de acidente de trabalho, independentemente da comprovação de culpa ou dolo do empregador (a quem cabe arcar com os custos). Ou seja, tendo ou não mitigado os riscos de contaminação.

Essa repercussão geral, inclusive, foi central na decisão do Supremo de derrubar no início da pandemia um artigo da medida provisória do governo federal que não caracterizava a covid como doença ocupacional. “Ela pode ser sim uma doença ocupacional, mas quais serão os limites? A jurisprudência ainda está em evolução, infelizmente, porque existem várias situações de dissenso envolvendo o órgão previdenciário, o órgão de inspeção do trabalho etc.”

Para Kamei, a pacificação do tema deve levar em conta que uma parcela da sociedade “está sendo sacrificada” durante a pandemia sem margem de escolha, e os dados de contágio têm comprovado o excesso de risco do trabalho de profissionais de saúde, de limpeza urbana e de frigoríficos, por exemplo. “Nós deveríamos tratar essa questão com mais sensibilidade, com algo que vá além dos aplausos. Temos que dar suporte social, previdenciário e tudo mais. Um colchão de cobertura para esse trabalhador que tem que se lançar na atividade e não tem escolha. Há uma situação de insegurança muito grande.” (Fonte: iG Economia)

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